Temos como base para este trabalho o texto do Professor Ângelo Turco: “Semânticas da Violência – Guerra, território e poder na África mandinga”.
Neste estudo o autor busca desvendar e analisar as organizações sociais e políticas de parte da África Ocidental, onde esteve fundado o Império Mali, território da tradição mandê, no qual são identificadas as relações da arte da guerra em função da autoridade política e familiar nesta área habitada pelo povo mandinga.
Destacamos aqui a importância do contexto estudado por este autor, a fim de perceber as dimensões do fundamento de identidade dos povos africanos, ligados por questões de autoridade política e social, que sob a égide da característica guerreira, podiam conduzir seu povo a uma perspectiva de ordem secular e territorial, que passaremos a analisar a partir de agora.
O primeiro tópico da abordagem textual trata da especificidade da Tradição Mandê, que são os traços culturais, materiais e simbólicos do povo mandinga. Traços estes que se estendem sobre territórios desde as bacias da Gâmbia ao Alto e Médio Níger, determinando o espaço geográfico mandê enquanto uma organização específica deste povo segundo os princípios do Reino Sundiata.A legitimação do poder nesta área segue a ordem de suas instituições hierárquicas, quais sejam: a esfera familiar, a política, a escravista e a de casta (marcando os graus de distinção social entre seus habitantes).
A respeito das instituições básicas da sociedade mandinga podemos verificar a importância das instancias de igualitarismo e, portanto estas instituições funcionam como limitadoras de interesses particulares como o econômico, o político e o ideológico de certos grupos, evitando assim uma disputa violenta por tais interesses.
O desenvolvimento do pensamento e práticas políticas segue por dois eixos:
O primeiro eixo leva em consideração a legitimação de poder de caráter político (mansaya) e da autoridade familiar (fasiya). Este último tem a função disciplinar do uso da terra entre seus recursos naturais a fim de garantir a sustentabilidade alimentar e física desta coletividade. Parte de uma autoridade originária e primordial, que integra os mecanismos de controle social e conservação do território em benefício da coletividade familiar e aldeã.
A autoridade mansaya tem um pressuposto político e trabalha em conjunto com a autoridade fasiya para o estabelecimento de um território politicamente organizado. Fasyia e mansaya reconhecem suas diferenças de papéis e mantém um respeito mútuo.
O segundo eixo leva em conta as identidades farinya e faamaya, ou seja, o exercício do poder político segundo a sabedoria descendente de ancestrais e a seguir, a autoridade que se baseia na força e na eficácia do despotismo.
Neste ponto, o professor Ângelo procura destacar a fase de dissolução do Império Mali, durante o séc. XVII, que acelerou um período de perturbações na África, como conseqüência da expansão do tráfico de escravos e a subseqüente interferência européia nos organismos de poder africano.
A partir deste momento o Império Mali foi fragmentado, estabelecendo uma nova face política e mercantil com a prevalência da violência organizada, identificada como kafo, que determina a estrutura de um verdadeiro Estado, que teve ainda assim de conviver com o sistema regulador familiar (fasiya)
O segundo tópico deste texto trata dos estatutos da violência organizada, que no mandê, exprimem um significado de grande importância social e cultural para estas comunidades, mas de extensão ambígua da violência, que pode ser o exercício brutal e o exercício disciplinado da força.
Neste âmbito, destaca-se uma figura estratégica do mandê: o donso, que é o caçador, um ícone bem reconhecido naquela sociedade. Ele é forte e corajoso, sabe manejar as armas e os parâmetros da guerra; leva consigo os princípios morais da luta justa e com objetividade. Por outro lado reina a figura do wula, onde se encontra o uso da violência cega e injustificada, sob o mando do mal absoluto que provém de forças sobrenaturais existentes neste território.
Esta passagem de transformação simbólica do wula para o dungu se faz através do caçador que respeita e preserva os segredos e lugares de culto e a partir daí integra os elementos do wula ao ambiente cultural das atividades sociais, como suporte para a mudança da natureza da vidência.
Outro aspecto levantado pelo autor é o da formação técnica e espiritual do caçador, no ambiente da ton onde existe a organização de sociedades secretas para o preparo do donso – o caçador profissional. Este aprendizado é livre a todos os homens que apresentarem as condições necessárias. Há um longo período de aprendizado entre mestre e aprendiz, que deve seguir todos os passos e determinações do chefe da ton. Este chefe é o caçador experimentado, hábil para evitar conflitos e dotado de poder místico para afastar os perigos do wula, é ele também que através da oração pode assegurar a harmonia da ton.
O donso pode ser um caçador ou então um porta-voz da confraria ton, e também um contador de crônicas e cantador de louvores.
Esta categoria de homem criou um status social de herói de caça, e por fim significa o elemento mais forte dos exércitos mandê, pautados na fidelidade e honra, com superioridade distinta de outra categoria de guerreiros: os soldados - escravos.
O terceiro tópico do texto trata neste ponto da gênese de Dunya – o mundo terrestre que passa do sobrenatural ao acolhimento do homem por uma espécie de parto do mundo humano seguido de conseqüente sofrimento que definirá a origem das instituições de ordem através da palavra e da violência.
A violência neste organismo social faz parte da necessidade de nascimento do mundo terrestre que desde então precisava estruturar a identidade mansaya como lugar político no mara. Aqui vemos a conexão entre o universo – cosmos e o espaço político – polis, que utilizará da violência como instrumento disciplinar deste mundo.
Descrevendo a epopéia do Império Sundiata, temos também a problemática da segurança do mandê que precisava preservar sua liberdade das perseguições de outras soberanias, assim como acabar com o banditismo proveniente da captura de escravos para o tráfico transaariano. A partir deste momento o rapto e venda de prisioneiros passa a ser feito também entre os habitantes da mesma aldeia.
A constituição política do mandê nasce do ato de violência organizada, mas num primeiro momento sob o princípio da guerra justa, que sob o comando de uma federação estável procurava eliminar o banditismo escravista, cunhagem de guerra étnica. Assim ocorre o nascimento do mandê mansal, ou seja, a instituição do mara que representa o poder político centralizador e que assume a função disciplinadora desta sociedade e passa a ser o representante efetivo do espaço mandê.
O mara exprime a plenitude política: é hereditário e moderado segundo as tradições de seu povo e seu senso de justiça. Este é o espaço de paz, segurança e prosperidade da comunidade, privilegiando o exercício do cultivo da terra e extinguindo o tráfico de escravos da região. O rei do mara torna-se o representante autentico desta sociedade, pois cria uma estabilidade para seu povo, que consegue enfim restaurar suas práticas culturais.
O quarto tópico deste estudo passa a analisar o contexto histórico das transformações ocorridas nesta sociedade a partir do século XVII com a pressão comercial européia em busca de escravos para o tráfico negreiro.
Desde então a África ocidental passa por uma regressão e degradação de seu espaço político, que acabou gerando uma estrutura de guerra civil, como instrumento de produção escravista. Nestas condições o mandê sofre as conseqüências de uma instabilidade e insegurança social, que acaba por desencadear o banditismo de pequeno porte e também como organização predatória sobre as ordens de um chefe.
Em torno do ano 1720, estabelece-se o reino Segu que será caracterizado agora pelo poder estatal baseado na condição bélica contínua específica de um estado guerreiro. Podemos perceber neste momento a diferença entre as identidades das autoridades estabelecidas desde então. No período do império Sundiata existia a mansaya como tradicional poder político e hereditário, o reino Segu revela a faamaya através da força da conquista, ou seja, sem o princípio da tradição e da sabedoria dos anciãos, é uma autoridade implantada na força física e no ardor do combate como praticante do banditismo, outrora condenável. Desta forma a autoridade do faama é reconhecida através da coação pelo medo, que impede a insubordinação da comunidade além de aumentar os tipos de obrigações, como suprir a necessidade de efetivos para guerra.
A guerra agora é feita para captar prisioneiros e transformá-los em escravos. Destes prisioneiros capturados, cerca de 1/3 permanece com o bando da expedição bélica, o restante dos homens são destinados a venda para mercadores, nas aldeias e praças comerciais, outro destino está no suprimento das necessidades públicas da corte e também para o cultivo agrícola, e por fim estão os destinados a reforçar os exércitos reais.
Neste reino Segu, as fronteiras são agora indeterminadas e móveis e resistem enquanto o faamaya assegurar o seu poder. Esta situação sé fez aumentar o mal-estar coletivo e a desagregação das instruções mandingas. A antiga instituição tradicional e familiar do mandê (fasiya) cai por terra enquanto a organização de guerra faamaya, esvazia o código mansal que garantiu durante séculos a estabilidade do Império Mandê.
O Dunya - mundo terrestre é a expressão simbólica da casa do homem que segue a trajetória do wula (selvagem), depois dugu (aldeia tradicional) e finalmente mara (o território político). Estes três espaços fundamentam a estrutura do mandê, que sobrevive com o exercício da prática bélica, elemento fundamental para garantir o território civil; através da guerra justa.
No mandê as estruturas de poder distinguem-se entre homens que possuem atributos e a legitimação política para o exercício do poder e por outro lado, os homens desprovidos de títulos para este exercício. Em face do poder em voga, este pode ser usado de forma justa ou abusiva, e neste último caso, terá sempre uma conotação negativa. Assim, compete à política a mediação do uso dos instrumentos de guerra a fim de evitar que a cosmópolis seja direcionada às formas mais primitivas e temíveis do mundo humano.
Foi portanto numa África carregada de história que os europeus chegaram como colonizadores e dominadores. Uma história construída ao longo de milênios, de que resultaram tradições e mentalidades complexas dentro de uma diversidade étnica e cultural que o colonialismo europeu não respeitou como identidade.
Toda a história dos povos africanos foi forjada através de lutas, de movimentos demográficos e expressões místicas de reinos e populações que construíram e derrubaram impérios e nos deixaram como legado os princípios básicos de nossa civilização, como as técnicas agrícolas, as criações de animais, o artesanato, instituições sociais e políticas e ainda uma série de outros progressos fundamentais a humanidade.
Este estudo nos remete a pensar sobre valores intrínsecos a sociedades africanas que foram esquecidos e mesmo descartados por uma dominação cheia de preconceitos e teorias científicas que passavam por cima da história desta civilização.
Agora, cabe a nós historiadores, participar deste resgate de identidade histórica que foi esquecida e subjugada por tanto tempo, para que nossos filhos e alunos também possam entender e valorizar suas origens e se abrir para novos campos de aprendizado.
Referências:
NISHIKAWA, Reinaldo Benedito. História da África. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2010.
CÂNEDO, Letícia Bicalho. A descolonização da Ásia e da África. 2 ed. São Paulo: Atual; Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1985.
adorei sua matéria, parabéns
ResponderExcluirEu busco informações sobre direitos autorais sobre a imagem griot?
ResponderExcluirEsculpe se isso é má tradução de Inglês
gostei do trabalho
ResponderExcluirMuito bom.
ResponderExcluirGostei
Estou estudando sobre o assunto É me ajudou muito.
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